Abstract
Com esta edição, o Boletim Epidemiológico Paulista alerta para um problema que, embora muitos não queiram reconhecer, é uma das mais sérias questões de saúde pública do momento atual e, infelizmente, dos próximos anos. Ainda que o consumo de tabaco seja um costume milenar, foi com a popularização do cigarro de papel, industrializado, de baixo custo, que os efeitos nocivos do tabagismo se constituíram em problema de saúde pública, na verdade, uma epidemia que se inicia nas primeiras décadas do século XX e continua até hoje. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o tabaco é a segunda maior causa mundial de óbitos, sendo responsável pela morte de um em cada dez adultos. Isso significa cerca de cinco milhões de óbitos anuais em todo o mundo. Cerca de metade dos fumantes existentes hoje — algo em torno de 650 milhões de pessoas — , se continuar fumando, morrerá por doença determinada ou agravada pelo tabaco. A epidemia de tabagismo teve e tem conseqüências sérias. Apesar de o adenocarcinoma pulmonar ter recebido mais destaque, por apresentar o maior risco relativo, é a doença coronariana que apresenta o maior risco atribuível na população. Outras conseqüências importantes do tabagismo, mas muitas vezes esquecidas, são as doenças arteriais, o enfisema pulmonar e o risco aumentado de diversas neoplasias, como a de bexiga, por exemplo. Paradoxalmente, parece existir certa cumplicidade da sociedade e mesmo dos profissionais de saúde em relação a esta epidemia. Uma epidemia de dengue ou de doença meningocócica jamais ocorreria por muito tempo sem uma reação por parte da opinião pública e dos serviços de saúde. Basta apenas verificar a quantidade de notícias na imprensa, muitas delas alarmantes, sobre a ocorrência de casos de doença meningocócica, mesmo quando não existe uma epidemia. No entanto, a sociedade vem tolerando uma epidemia que já dura quase um século, que determinou e determina um número alarmante de óbitos e de incapacidades, com um custo elevadíssimo para o sistema de saúde, além do custo indireto, também elevado, para a sociedade. Em junho deste ano, foi publicada a avaliação de 50 anos de seguimento de uma coorte de médicos ingleses, constituída em 1951, para avaliar as conseqüências do tabagismo. No artigo, que merece ser lido na íntegra, as conclusões foram de que as conseqüências do tabagismo são mais graves do que se aceitava até então. Há alguns aspectos do tabagismo que continuam pouco lembrados. Há dez anos, um estudo caso-controle sobre risco de doença meningocócica em criança em Bristol, na Inglaterra, já mostrava que um odds-ratio para ocorrência de doença meningocócica de 7,5 (intervalo de confiança de 95% (IC) de 1,46 a 38,66) para criança expostas ao fumo em casa, fumantes passivos, portanto. O risco aumentava com a quantidade de cigarros fumados pelos pais ou outras pessoas do mesmo domicílio, sugerindo uma relação dose-dependente. Este não foi o único estudo a encontrar uma relação de risco entre fumo e ocorrência de doença meningocócica. Outro estudo caso-controle, este no estado norte-americano do Oregon, mostrou um odds-ratio para ocorrência de doença meningocócica de 3,8 (intervalo de confiança de 95% (IC) de 1,6 a 8,9) para crianças e adolescentes cuja mãe era fumante. Também em adultos, o odds-ratio para ocorrência de doença meningocócica em fumantes passivos e ativos era de 2,5 (intervalo de confiança de 95% (IC) 0,9 a 6,9) e 2,4 (intervalo de confiança de 95% (IC) 0,9 a 6,6), respectivamente, também com uma correlação doseresposta. Neste estudo, aproximadamente 37% dos 129 casos poderiam ser atribuídos ao fumo. Mais recentemente, um estudo caso-controle no País de Gales, para avaliar o risco de estado de portador para a Neisseria meningitidis, mostrou também uma significativa associação com o fumo, tanto fumantes passivos como ativos. O estudo de Levèfre e colaboradores [veja adiante Criança: fumante passivo sem opção, apresentado nesta edição do Bepa], mostra bem que o tabagismo, além de um sério problema de saúde pública, é complexo o bastante para que sua redução não seja um processo simples e pontual. Será necessário um esforço cooperativo de toda a sociedade, mas cabe aos serviços de saúde liderar esse processo. Aí reside uma contradição preocupante. Ainda que as evidências das conseqüências do tabagismo sejam avassaladoras e indiscutíveis, os serviços de saúde são tímidos na implementação de ações para reduzir o uso do tabaco. Não é mais possível tolerar essa situação. A redução, e eventual eliminação, do tabagismo deve ser item prioritário na agenda da saúde pública, sob pena de convivermos na mais descarada hipocrisia.
Luiz Jacintho da Silva
References
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